Sobre o instante que os apresenta: os retratos de Bella Tozini

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Sylvia Furegatti

Artista visual e Professora universitária

Retrato, instante e identidades multiplicadas são elementos trabalhados pelo projeto “Lacração” que se organiza pela linguagem da fotografia de retratos de pessoas envolvidas com práticas queer na cidade de Jundiaí, situada a cerca de 50 quilômetros de São Paulo.

As gentes, as cores e as certezas vibrantes apresentadas por este projeto são índices para os variados caminhos que nele superam o precipitado jogo de oposições com o qual este universo tem sido lido e descrito. O próprio contexto no qual se configura, a partir da revisão do binômio arte-sociedade construído pelas teorias queer, expõe-se como primeiro dos pontos de sua complexidade e evidencia a dificultosa relação manipulada pela traição que acompanha toda tentativa de tradução. Como se pretende aqui demonstrar, lacração é texto, imagem, corpo e discurso.

Suas imagens figuram e configuram os limites borrados das subjetividades de corpos-sujeitos urbanos, análogos aos corpos-vividos que protagonizam a urgência de sua própria existência, tal como aquela reclamada pelo poema “Instante” atribuído tanto a uma mulher, quanto a um homem. Escrito, provavelmente em 1978, “Instantes” conclama o presente e o agora como elementos condutores da errática deriva que valoriza a vida.

Nele é listada uma série de atividades que seu autor/autora fariam se pudessem retomar a juventude. Divulgado como sendo da autoria de Jorge Luis Borges; atribuído a poetiza norte-americana Nadine Stair_ que provavelmente não existiu com este nome e sobrenome_ “Instantes” circula, desde meados da década de 1990, na fluidez da duplicidade de suas supostas autorias e figura como um dos poemas falsos mais conhecidos de Borges.[1]

 

Retrato, instante e identidades multiplicadas são elementos trabalhados pelo projeto “Lacração”, que se organiza pela linguagem da fotografia de retratos de pessoas envolvidas com práticas queer na cidade de Jundiaí, situada a cerca de 50 quilômetros de São Paulo.

Para além de sua forma, a história que cerca este poema assume particular importância para o contexto a ser discutido neste texto de apresentação do projeto “Lacração”, uma vez que nele configuram-se o retrato espelho dos desejos de um corpo-vivido; o instante que o nomeia e dá o tom de seus versos e as identidades múltiplas indicadas pelas atribuições de sua autoria.  Assim, duplicado, o poema alcança os mais variados espaços eruditos ou populares nos quais a Poesia poderia adentrar. Na última década, a viúva de Borges trata de desmistificar a atribuição feita a ele e muitos são os estudos que discutem de modo específico a condição dúbia dessa peça poética. [2]

O poema ganha assim caráter processual; invoca tais atenções para si por tensionar a questão da autoria, circunstância que, dentre tantas variáveis não deveria ser aquela mais importante, frente a contemporaneidade à qual se apresenta. Há, contudo, no exato ponto da autoria dúbia, questionamento que o lança para o lugar dos desafios sofridos pelos projetos e autorias vinculadas às heranças ortodoxas que arregimentam o papel autorreferente do autor ante a sua criação. O esgarçamento dessa relação obra-autoria, tal como elaborado pelo século XX, acaba por estender a vitalidade dessa peça poética para além do seu enredo ou das formas de seus versos.  Deste modo, revigora a espessura de seu significado como poesia, ao aproximar-se dos entrelaçamentos e aporias da história de seu entorno que o qualificam como arte.

De maneira análoga, o Projeto “Lacração” de Bella Tozini se apresenta, antes de tudo, como processo e não como objeto. Resulta das incursões da fotógrafa propositora pelos espaços noturnos de encontro, conversas, esperas, ensaio fotográfico, livro, exposição, workshop. Combinados, esses elementos do processo nos indicam a geometria aplicada para a cultura do instante que pauta a imagem fotográfica e organiza a temporalidade desta proposta artística. Entende-se que sua forma e conceito desviam-se do jogo das oposições à busca de deslindarem-se por contiguidades, desdobramentos e fluxos. Nesse sentido, configura-se num ínterim dentre: visualidade e visibilidade; aparência e essência; entre os atos de olhar e perceber. São estes os vetores considerados para a construção do modelo de operação que, junto da noção de organismo vivo e da ideia de acontecimento podem nos auxiliar na compreensão do projeto.

Retrato, instante e identidades multiplicadas são elementos trabalhados pelo projeto “Lacração”, que se organiza pela linguagem da fotografia de retratos de pessoas envolvidas com práticas queer na cidade de Jundiaí, situada a cerca de 50 quilômetros de São Paulo.

Das configurações ordenadas pela Fotografia contemporânea em sua constituição como Arte derivam boa parte das atenções e tensões presentes neste trabalho que, longe de esgotar-se na leitura convencionada da imagem, vincula-se no espaço-tempo expandido da proposição poética produzida e busca compreender a necessidade anunciada desse estado de fluxo. Uma vez que, o que também se coloca como ponto a ser alcançado é a mudança de paradigmas para a imagem fotográfica, o projeto pretende operar uma métrica de ajustamentos das relações dentre o propositor/sujeito criativo/fotografo/artista e o contexto social/urbano/cultural no qual seu objeto de atenção se insere.

É prática cada vez mais presente em significativa parcela da produção e da reflexão sobre a arte contemporânea, estabelecer equivalência de importância entre o recorte poético e a estrutura espacial, conceitual, social de sua instauração. Nas mais variadas manifestações artísticas atuais, publicadas ou não pelas diferentes agendas do mundo importa_ para além da técnica e da poesia própria_ a formulação de estratégias de ação que bem localizam o fato artístico em outros espaços, tempos e lugares. Trata-se, assim, da revisão necessária que se executa entre a já conhecida demanda por novos lugares-para-a-arte, atualizada pelo entendimento de que a volatização dos formatos, agentes, anuências, plataformas e temporalidades nos conduzem para outro estatuto: o dos lugares-da-arte de hoje.  

Nesse sentido, a Fotografia pode bem ocupar o lugar de uma das mais instigantes linguagens artísticas a promoverem a revisão das posturas adotadas pelos sujeitos criativos no século XXI. Por ser ainda razoavelmente fisgada pela lógica da representação objetiva do mundo, essa linguagem nos apresenta seu propositor (fotógrafo, artista) e seus ativadores (espectadores, interatores) em duelo fortuito, travado a partir da discussão sobre a crença do valor de verdade que seu engenho induz. Contudo, é preciso ultrapassar a barreira da tecnologia para que se compreendam as armas mais efetivas deste duelo anunciado. O que se propõe é a substituição das importâncias aplicadas aos dados plástico e tecnológico em nome dos dados espacial e contextual nos quais se institui renovada espessura para o campo da expressão fotográfica. À medida que se evocam a ação e os processos embutidos nas estratégias artísticas estimuladas pelas práticas da deriva, do diálogo e pela postura autocrítica de seu propositor capaz de desvelar os modos de naturalização que habitam o mundo por meio da representação, a Fotografia estabelece-se em outro patamar de representatividade. Griselda Pollock discute essa condição ampliada a partir da análise que elabora sobre a obra “The sound of silence” (2006) de Alfredo Jaar e pondera que seu trabalho:

(...) no consiste en producir imagenes sino en la creación y coreografia del encuentro entre el espectador y éstas, y de la conseguiente reflexión del espectador, en una cultura saturada de imagenes (...)

Retrato, instante e identidades multiplicadas são elementos trabalhados pelo projeto “Lacração”, que se organiza pela linguagem da fotografia de retratos de pessoas envolvidas com práticas queer na cidade de Jundiaí, situada a cerca de 50 quilômetros de São Paulo.

A Fotografia atualiza seu reconhecimento como linguagem expressiva da arte contemporânea quando opera um papel crítico e criativo como espécie de agente infiltrado no mundo conhecido. Em sua prática, apoiada nas superfícies das imagens que produz, pressupostas como denominadores comuns da sociedade, a Fotografia acaba por moldar-se num estatuto camuflado que passa a bem dosar os termos da sedução dessa superfície, de modo a permitir a efetiva prática do questionamento das heranças plásticas, conceituais e normativas que até então envolvem seus objetos construídos. Fotografar implica, portanto num espectro combinado e equivalente de atos poético, artístico e político. É assim algo por ser construído, como já bem nos sugeriram Anselm Adams e Alfredo Jaar em suas definições muito próximas, ambas promulgadas no século XX, sobre a problemática da imagem fotográfica.[1]

O que se desdobra, a partir de seu caráter maquínico é menos a especificidade temática ou sua especialização técnica e mais a possibilidade própria dessa linguagem em elaborar ajustes na perspectiva com a qual os artistas/fotógrafos constroem o universo de seus interesses e recortes. Essa ideia afasta-nos da justificativa de certo estrangulamento_ compreendido até então como particularidade e reincidência temática a permearem a obra de determinado artista_ permitindo-nos, por fim, compreender essa ação e interesses pelo ajustamento de sua postura criativa em relação à norma e às veladuras do sistema de leitura e compreensão da arte no espaço social.

Neste ponto nos encontramos com as ideias da autora Ace Lehner e sua articulação prática, poética e crítica com a qual ela elabora o Retrato na Fotografia Contemporânea por meio de revisões da manipulação cultural engendrada pelo processo de visão que instrumentaliza nossa relação com a imagem fotográfica, desde sempre. A autora está interessada nas possíveis intervenções que a fotografia de retratos pode oferecer para os ajustamentos das heranças que afetam a construção da imagem hegemônica sobre as temáticas marginalizadas em seu modelo de representação. Dedica especial atenção para a figura feminina e seus embates com a naturalização da heterossexualidade ou o reducionismo de sua identidade própria ante aos ritos convencionais da sociedade. A partir de um texto analítico em que propõe uma análise sobre um conjunto de trabalhos de Catherine Opie, Nikki S. Lee, além de seu próprio trabalho, nos apresenta caminho muito instigante a ser trilhado. 

Retrato, instante e identidades multiplicadas são elementos trabalhados pelo projeto “Lacração”, que se organiza pela linguagem da fotografia de retratos de pessoas envolvidas com práticas queer na cidade de Jundiaí, situada a cerca de 50 quilômetros de São Paulo.

[1] A problematização da origem do poema “Instante” pode ser recuperada por diversas fontes bibliográficas de modo mais científico ou meramente especulativo. É possível resgatar parte desta história por meio da página dedicada aos Estudos online sobre Borges, vinculado à Universidade de Pittsburg: https://www.borges.pitt.edu/bsol/iainst.php ; ou então em sites e blogs pessoais dedicados ao universo da Literatura tais como “Falando em Literatura” https://falandoemliteratura.com/2014/06/14/o-poema-instantes-nao-e-de-borges/.

[2] O periódico online argentino “El Universal” traz a declaração da viúva do poeta, María Kodama publicado em: http://archivo.eluniversal.com.mx/notas/483722.html .

[1] “O trabalho de Alfredo Jaar não consiste em produzir imagens, mas na criação e coreografia do encontro entre o espectador e estas, e da reflexão reflexiva do espectador, numa cultura saturada de imagens.” POLLOCK, Griselda. “Sin olvidar Africa: Dialécticas de atender / desatender, ver/negar, de saber/entender en la posición del espectador ante la obra de Alfredo Jaar” In: Alfredo Jaar. La política de las imágenes. Santiago, Chile: Ed. Metales Pesados, 2014, p.127.

[1] Anselm Adams é o autor da citação: “We dont take pictures, we make it” ao que Alfredo Jaar atualiza com: “Una photografía no se toma, se hace”. A frase de Jaar é estampada em várias plataformas distintas e aparece, também, como importante componente no vídeo do trabalho anteriormente citado “The sound of silence”, 2006.

 

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