Aspectos de la Relación
Arte, Naturaleza y Paisaje en la Contemporaneidad
Texto publicado originalmente em: MARTIN, Miguel A Chaves (org) VIII Jornadas Arte y Ciudad. V Encuentros Internacionales, Madrid: Universidad Complutense/ Grupo de Investigación Arte, Arquitectura e Comunicación en la ciudad contemporánea, nov, 2017, pags. 59-68.
Apresentação:
Trata-se de um estudo elaborado a partir de pesquisas poéticas e teóricas recentes no qual se discute a relação da natureza e da paisagem na produção artística contemporânea. O percurso criado pelo texto busca compreender, a partir da tríade Arte, Natureza e Paisagem como os elementos destes campos de ação e conhecimento críticos e criativos reelaboram a questão dos lugares urbanos disparadores para outros modos da ação artística contemporânea. Sob esta condição, trabalhos seminais de Joseph Beuys, Jenny Holzer e Nelson Felix_ criados a partir de jardins, bosques ou pequenos trechos marginais onde a natureza torna-se estrutura e gatilho para a arte_ são analisados para neles localizar afinidades eletivas que vem pautando projetos recentes de intervenção artística de minha autoria.[1]
Palavras-Chave:
Arte; Natureza; Paisagem; Vigília, Lugares da Arte de hoje.
Introdução:
A ampliação dos limites originariamente estabelecidos para o campo Arte-Cidade instrumentalizada pela ressignificação da Paisagem no contexto da produção artística contemporânea, estabelece o recorte proposto para este estudo.
A aproximação proposta para este conjunto de trabalhos artísticos elaborados por Beuys, Holzer, Felix e meus próprios busca evidenciar a singularização da natureza como elemento estruturador dos processos criativos e poéticos praticados. Se se constituem como um conjunto possível, é pelo viés da clara intenção de diálogo entre o espaço urbano e as bordas da paisagem natural percebida em cada trabalho, a despeito de suas distâncias físicas, de agenciamento ou de visibilidade, como será tratado mais adiante. Assim, a análise praticada adota um contexto espacial burilado pelas relações limítrofes, ou algo borradas, entre natureza e urbanidade tal qual nos sinalizam os conceitos críticos das formas da Arte Extramuros na contemporaneidade.
Privilegiam-se os modelos operativos atravessados pela ideia de “espaço de paisagem” de modo a constituir certa organização em camadas para as variantes formas manifestas pela Arte em relação à Paisagem. Nesse ponto, busca-se, nesse espectro de ampliação do campo Arte-Cidade, borrar a antítese pressuposta no campo conceitual da Arte instaurada em espaço urbano, na atualidade.
Esta perspectiva nos conduz à relativização das distâncias conceituais entre Meio Urbano e Arte Contemporânea e considera a Paisagem como espaço interim, um fluxo entre a cidade e outras localidades tais como o campo, o deserto e demais espaços vinculados à Natureza, nos quais tem se sedimentado parte expressiva da práxis artística contemporânea que não necessariamente bem se acomoda nos limites de terminologias e conceituações tais como Arte Urbana.
Entende-se que nesta ampliação do constructo espacial e simbólico em que se estabelecem os trabalhos artísticos contemporâneos podemos encontrar novas temporalidades que revelam noções importantes e ainda pouco discutidas sobre o campo de encontro entre Arte e Natureza. Uma dessas noções diretamente atreladas à temporalidade é o elemento da vigília; condição que passa a ser demandada por trabalhos artísticos tão instáveis física e temporalmente quanto o próprio crescimento de um jardim.
A espacialidade praticada em tais proposições artísticas e sua forte vinculação à paisagem de campo ou de floresta nos propõe a percepção da constituição de uma camada de amortecimento gerada pela Natureza, como sendo aquela que sempre está a receber primeiramente o espectador/visitante e a produzir outras velocidades para a relação de expectação da arte e de seus interatores.
A experiência de atuação como artista visual dos últimos quinze anos acumula um conjunto de intervenções artísticas realizadas em diferentes cidades do Brasil e demais países da América Latina, elaboradas por meio do contato direto com grupos artísticos, população local, transeuntes de centros urbanos, regiões distantes dos grandes centros metropolitanos do Brasil, cidades essas eleitas na quase totalidade dos eventos, a partir de sua localização fora do eixo das grandes capitais urbanas ou ditas culturais. Essas localidades são eleitas pelo interesse expresso de busca por novas maneiras para praticar a interação entre arte, artista e públicos.
A perspectiva dessas ações soma-se à preocupação de minha pesquisa docente e encontra folego na atenção dispensada ao discurso específico e trabalhos executados por artistas do mundo todo que interferem na paisagem das cidades ou de outras localidades de modo a propor a requalificação discursiva desse campo revisando assim o papel e a atuação do artista visual. Ou seja, a eleição e a análise crítica e criativa das proposições que tem em sua instauração ato e efeito de revisão sobre os lugares da arte; sobre novas perspectivas para a delongada relação travada com a instituição e o reiterado interesse pela paisagem constituem o escopo de trabalho prático e teórico desenvolvido e sugere a verticalização dessa análise proposta.
Paisagem como ínterim entre Arte e Natureza
As últimas décadas de reflexão e trabalho no espaço aberto e urbano revelam aos seus estudiosos que a identificação algo restritiva, usualmente aplicada aos contornos estabelecidos pela Arte Urbana, carrega um modelo instigante para que avancem as investigações sobre as motivações espaciais apresentadas pelos trabalhos de artistas interventores interessados em áreas de natureza, do deserto, de espaços distanciados também em relação aos circuitos reconhecidos de Arte. Esta sugestão indica que o fenômeno urbano teria ocupado um posto histórico importante para a revisão dos lugares da Arte na atualidade; contudo, o encadeamento continuado dessa revisão efetivada pelas operações artísticas contemporâneas, nos apresenta a Paisagem como possível e renovado elemento que reestrutura as relações e hierarquias estabelecidas entre arte, tempo e espaço.
A Natureza, estruturada em muitas das investigações práticas e teóricas da atualidade evidencia-se, primeiramente como alinhada ao processo, como propositora de projetos e eventos preferidos em relação aos objetos colecionáveis, por excelência. Em segundo plano, esta produção estruturada à margem do constructo espacial urbano localiza nos pontuais espaços geográficos existentes de Paisagem da Natureza oportuno distanciamento (físico, simbólico, sinestésico) dos centros urbanos e de seus equipamentos, geralmente circunscritos às atuais agendas, circuitos e seleções pautadas por heranças cristalizadas em seu formato, temporalidade e elaborações conceituais.
Interessa também indagar sobre o crescente interesse pela paisagem que se pode notar na produção contemporânea. Dos vários sentidos que podemos atribuir à Paisagem destaca-se uma noção de fluxo, espécie de elemento entre due do jogo de forças estabelecido entre Arte e Natureza. Como se, a partir desta condição em fluxo, pudesse ser a Paisagem, um dos condutores identificados pelos representantes da Arte Contemporânea como suficientemente frutífero para se revisar seus estatutos.
Parece haver aqui importante campo a explorar sob a luz das ressemantizações estabelecidas pela Arte, por seus representantes e suas Instituições a cerca dos muitos modos e aparições da Paisagem na produção artística ao longo do tempo. Nesse sentido, trata-se de buscar entender de que modo estas distintas aparições guardam especificidades que as mantém tão particulares quanto atuais na formação e na atuação dos artistas contemporâneos.
Assim, o que se propõe é que por traz do novo fenômeno da espacialidade artística antepõe-se um modelo operativo tão variado quanto rico que nos orienta nas leituras do binômio Arte/Natureza. Como se pudéssemos verificar nesse binômio a existência de distintas camadas que podem identificar trabalhos artísticos nos quais a Paisagem e a Natureza não são objetos, mas sim, elementos estruturantes fundamentais.
Essa composição estruturante pode ser encontrada na noção de ambiência e cercania que se verifica na Paisagem. Em acordo com o que indica o autor Martin Seel, a experiência de um espaço como paisagem não dispõe de um centro, de eixos fixos ou mesmo de observadores. Trata-se de uma experiência que se dá na integração do sujeito em meio a um espaço de relações dinâmicas, um “espaço que acontece” no qual “os sujeitos corpóreos experimentam-se como seres receptivos e vulneráveis ao meio de um acontecer espacial”; experiência proporcionada, portanto, pela participação ativa em um “aparecer processual e multiforme de figuras espaciais.” (Seel, 2007: 39)
Portanto, o modelo de Mapeamento que ordena historicamente, desde a Land Art, o campo combinado entre Arte, Paisagem e Natureza parece contemplar uma efetividade delimitada frente à complexidade dos modelos de operação desempenhados pelos artistas contemporâneos em outros espaços.
Para adentrarmos nessas práticas operativas, temos antes de compreender os limites impostos pela ideia da cegueira paisagística que – por algum tempo – determinou a noção de Paisagem como conjunto panorâmico a ser constituído por uma visão tomada à distância. Vencida essa limitação passamos a compreender que a Paisagem inscreve-se na experiência da presença; dotada de percepções complexas e sinestésicas que lhe fazem existir para além da mera visualidade. Por esse caminho a paisagem configura-se como percepto e nos indica a necessidade de dimensionamento, do estabelecimento de pontos limítrofes dentro dos quais certos objetos são ativados a partir de seu contexto dinâmico.
A cerca da dimensão do espaço de paisagem, Martin Seel coloca que o aberto de uma paisagem está também vinculado a certo afrouxamento do comportamento predeterminado que praticamos no espaço fechado; situação na qual nos encontramos receptivos à presença irregular, inabarcável, de um espaço maior. É o que nos acontece no deserto ou numa campina, por exemplo.
Neste afrouxamento é que se estabelecem as relações de surpresa, alegria, encantamento, medo, ou seja, a conjugação da relação estética que coaduna Arte à Natureza, desde sempre. Contudo, é preciso ressaltar neste ponto que essa relação não é exclusiva entre a Arte e os Espaços de Paisagem da Natureza, mas sim, específica do encontro entre Arte e Lugar. E é nesse sentido que se constitui como base da Arte Extramuros; entendida como revisadora de parcela significativa das proposições artísticas de nosso tempo.
Essa “relação específica” estabelecida entre Arte e Lugar tem como elemento estruturador a ação crítica do sujeito artista que atua de maneira apartada dos índices plásticos – por excelência, os mesmos que constroem parte dos objetos colecionáveis praticados no espaço do abarcamento ou ainda, por ele bem representados. Esses seriam, portanto, objetos fixos, pertinentes e pertencentes à instituição cultural e ou museológica mais convencional. Sugerem um tipo de conforto e conformidade com esse lócus. Cabem-lhe bem. Podem até mesmo evocar o espaço de seu entorno, mas não são incomodados pela institucionalidade desse espaço.
Prescindem da ideia do inabarcável, próprio da noção de Paisagem, comentado por Seel e que se aloja na revisão entre Arte e Lugar proposta pelas formas da Arte Extramuros contemporânea que conclama para si uma ideia de espacialidade volátil, dada pela expressão: “Nem dentro, tampouco fora, mas certamente, em outro lugar”.
Javier Maderuelo nos adverte sobre a necessidade de encerrarmos um campo para as vastas determinações que acompanham a Paisagem ao longo do tempo e das sociedades. Pautado pela História da Cultura, este autor indica a vocação da Paisagem às atividades artísticas, na forma do gênero da pintura ocidental que dissemina a conexão entre ela e as práticas culturais estendidas, por exemplo, para o Paisagismo. (Maderuelo, 2007: 11).
Como fenômeno da cultura, a paisagem produz-se fisicamente_ entorno real_ tanto quanto é também a representação deste entorno, quando assume a forma de uma imagem. Esse raciocínio permite-nos retomar a questão das camadas de estruturação da Paisagem, passíveis de serem identificadas por estratos nas proposições artísticas da atualidade.
Está na ambiguidade e na fluidez da ideia de Paisagem a força motriz que ativa, em nosso tempo, na produção contemporânea, a elaboração de trabalhos artísticos dotados de diferentes camadas de apropriação de seus elementos; dentro, fora, além dos espaços designados para a Arte. A oscilação dessa apropriação da Paisagem configura-se por meio de um ziguezague, oportuno e oportunista, tramado pelo artista visual, diante das aberturas críticas e criativas que se lhe oferecem para a renovação de suas proposições.
Reconhecimento e afinidades em Beuys, Holzer e Felix
Em distintos trabalhos, os modelos operativos aplicados por Joseph Beuys, Jenny Holzer e Nelson Felix, apresentam essas camadas de sentido dentre Arte, Paisagem e Natureza e propõe um campo fértil de investigação com rebatimento para as questões atuais por mim praticadas em projetos artísticos de intervenção. O reconhecimento se efetiva também por meio de múltiplas camadas; seja por que esses artistas estabelecem proposições de Arte por meio da Natureza, tratada como paisagem física, territorial, geográfica, eleita como lugar específico, lugar para a arte; seja porque eles elaboram_ por meio de espaços antepostos à urbanidade_ outras camadas simbólicas referenciadas pela Paisagem e aplicadas a objetos, imagens ou discursos tomados como proposição artística que, mais tarde, passam a perfilar como conjunto de objetos institucionalizados.
Talvez, o exemplo mais emblemático dessa estruturação criada por Beuys pode ser encontrado em “7000 carvalhos”, projeto elaborado por ele para a Documenta de Kassel de 1982, que toma cinco anos para completar-se com a plantação das sete mil mudas de carvalho enterradas ao lado de monolitos de basalto, por distintos espaços daquela cidade alemã. A volumosa pilha de pedras é inicialmente depositada em frente ao Fredericianum, durante o evento da Documenta. Após um longo período de debates sobre a relação homem-natureza, Beuys e seus colaboradores iniciam o trabalho que desmancha a pilha e remodela o entorno da cidade e do circuito. Configura-se assim como um projeto de Arte Pública de Beuys; uma ação comunitária da qual participaram o artista e diversos públicos envolvidos dentre o inicio até o final em junho de 1987, tempos depois de sua morte.
Neste trabalho Beuys emprega energia criativa transformadora que é a base de sua obra em uma ação que toma lugar na paisagem urbana de Kassel num tempo delongado de intervenção modeladora da paisagem. Aproxima-se do conceito de Landscape-urbanism ditado por vários autores como James Corner e Charles Waldheim, que apresentam este conceito a partir do desenvolvimento de uma ecologia espaço-temporal que trata de todas as forças a atuarem sobre o espaço urbano como uma rede contínua de inter-relações.
O Landscape-urbanism revisa o lugar da Paisagem e da Arquitetura no projeto urbano contemporâneo, particularmente notado a partir da periferia. No Landscape-urbanism a Paisagem, e não a Arquitetura é o elemento transformador que promove a disrupção e age contrario à planificação trazida pela globalização. Trata-se da dissolução da antiga oposição campo cidade, incluída a valorização do vazio, como espaço-não-construído; espaço portanto, natural presente e ou revelado dentro das cidades contemporâneas. Entendemos assim que, por essa linha de raciocínio, tempo e espaço são revisados à luz das complexidades dos territórios urbanos constituídos pelos conflitos das heranças da morfologia urbana.
A proposição de Beuys, em projetos como este elaborado para Kassel, introduz um contexto de vigília ao trabalho que amplifica para o grupo, para os interatores urbanos, preferidos em relação aos espectadores tipificados pela instituição cultural, um tipo de temporalidade que radicaliza os conceitos mais clássicos de expectação, participação, ativação de um projeto de arte na paisagem.
O envolvimento com os públicos atores diretos de sua construção ou interatores de seu desenvolvimento no tempo dilatado de “7000 Carvalhos” sugere que não somente o artista propõe-se a investigar novos prazos e outras temporalidades em sua produção poética pessoal, como indica que a métrica do tempo particular dos elementos da Natureza que constituem o trabalho (pedra basalto e árvore de carvalho) é aquela que dita a aparência própria a ser assumida pelo trabalho, como arte.
Beuys pratica o sentido do inabarcável da Paisagem nesse projeto, a partir de elementos da Natureza tornados objetos infiltrados no sistema urbano. Como Arte, podemos dizer que são coisa fora do lugar previsto, são inconformados e resilientes.
Direção próxima a esta é tomada por Holzer e Felix nos respectivos projetos “Black Garden Antimemorial” e na “Série Gênesis”.
Black Garden Antimemorial é o primeiro projeto de Holzer que se estabelece na forma de um jardim. A artista cria este projeto para a cidade de Nordthon, na Alemanha, entre 1992 e 1994. Composto por tulipas negras e um tipo de grama japonesa de um verde muito escuro, o jardim tem lugar no Memorial de Guerra de um parque municipal, construído em 1929. O lugar é tomado de múltiplas e controversas camadas históricas em torno da participação alemã na II Guerra Mundial. É entremeado pela presença de uma figura escultórica em bronze disposta no centro da praça, nua, retirada posteriormente nas remodelações sofridas, que revisam, de modo algo protocolar, a lembrança dos soldados abatidos em combate para o lugar.
As discussões sobre o simbolismo impetrado à História daquele lugar-memorial tomam vulto em meados de 1986, de modo a promover a encomenda de um novo projeto a ser feito por Jenny Holzer, no ano de 1989. Atenta a essas camadas de informação, Holzer cria o que parece ser um eco do antigo e menor jardim circular existente na parte baixa do parque. A partir da descrição feita por Udo Weilacher (2005), se percebe que este jardim circular criava uma sequência anelar de jardineiras e passeios ritmados pelas cores avermelhadas dos pedriscos e negra das plantas escolhidas. É na verdade um antimonumento à medida que estabelece a esse espaço de paisagem outras inscrições que buscam evidenciar o absurdo e a crueldade da Guerra.
Utilizando um recurso textual já conhecido em outros de seus trabalhos, Holzer inscreve sobre bancos de arenito as frases do texto que batiza de “War”. Dentre essas frases escritas por ela nos bancos encontramos evocações sobre a relação entre vida e morte a partir de uma Natureza ativa e agressiva: “O oceano lava os mortos. Eles estão virados para cima e para baixo na espuma. Os corpos rolam das ondas para abrir o pântano.” (Holzer: 1998, 140)
Ao centro, Holzer planta uma pequena árvore do Arkansas que produz maçãs negras, elemento que configura a complexidade de simbolismos aplicados pela artista ao projeto todo. O tom melancólico buscado por ela está apoiado nas cores tão exóticas quanto escuras das plantas daquele jardim: tulipas negras, grama japonesa (Black Mondo), a pequena macieira do Arkansas, gerânios folhados escuros, Ervas de São Lourenço (Ajuga), Berberes, etc produzem folhas, botões, flores e frutos muito escuros que ativam esse espaço de paisagem de tal forma que parte do público local acaba por rejeita-lo.
Holzer presta um acompanhamento regular, anual ao trabalho (Weilacher: 2005, 56), como quem se responsabiliza por seu jardim. Sobre ele, declara: “É um ponto de partida, uma nova maneira de agir (…) um lugar para aprender e para experimentar” (apud Weilacher: 2005, 57).
Podemos compreender este antimonumento criado por ela a partir da ideia da Paisagem como fluxo: no lugar da arquitetura monumental; da escultura comemorativa ou mesmo do painel gráfico digital, a artista prefere o jardim. A sazonalidade característica de cada planta, das variadas escolhidas por ela, produzem um espectro de instabilidade e profundo amortecimento do tempo para aqueles que aceitam adentrar e ali permanecerem por algum tempo. Nesse sentido é que encontramos também outra importante chave de compreensão sobre os vetores da espacialidade e do político presentes em trabalhos artísticos instaurados em lugares simbolicamente adensados: a estratégia do antimonumento empregada por Holzer revisa aquele lugar simbólico evidenciando a dificuldade crescente de nossa sociedade em lidar com o passado. Como bem alerta Udo Weilacher, em sua descrição sobre o projeto de Holzer: “Para um mundo que prefere se ver como jovem, dinâmico e atraente, a morte é quase sempre uma falha que deve ser explicada plausivelmente de tal forma que a normalidade possa ser restaurada, o mais brevemente possível.” (Weilacher: 2005, 58)
A ideia do convite, sempre presente na estrutura de um jardim ou de um trecho de mata baixa, promove uma camada de amortecimento na expectação, como se nos preparasse, em outra velocidade, de modo mais lento, para a recepção de uma ideia, de uma informação, de um objeto estético. O jardim antimonumento de Holzer é como o “ladrão de mata” descrito pelo “Grande Dicionário da Lingua Portugueza” ou “Thesouro da Lingua Portugueza” produzido pelo frei Domingos Vieira, em 1871. Ele nos acautela para as distinções entre o que é selvagem e o que é feroz:
Selvagem é o animal que vive nas selvas, bosques ou matos, é por consequência, agreste e bravio. (…) Feroz aplica-se em sentido próprio aos animaes carniceiros ou daninhos, e em sentido figurado ao caráter ou qualidade de moral de algumas pessoas. O leão, o touro, o tigre e o javali são animaes selvagens e ferozes. O veado, o gamo, a corsa, o cabrito montez são somente selvagens. (…) o ladrão de estrada que rouba e mata não é selvagem, mas sim feroz. (Vieira, 1878: 391)
Nas análises críticas sobre a obra de Holzer é frequente encontrarmos adjetivação sobre a coragem de seu trabalho. Aliada a essa coragem parece estar a ferocidade que articula ação e espera, e assim, tempo e lugar para que o objeto artístico constitua-se. Deste modo, esta configuração nos remete novamente à ideia do inabarcável tratada anteriormente.
A sensação de amortecimento produzida pela Paisagem em seu tempo delongado aproxima-se de uma ideia trazida por Ronaldo Britto sobre a necessária revisão dos estudos da forma na Escultura e em projetos artísticos que evocam a espacialidade para ocorrerem. Brito, tratando de aspectos da exposição intitulada de “Carimi” e realizada por Felix no Museu da Valle, Vitória, em 2006. Brito revela-se na encruzilhada da escrita crítica ante ao descolamento físico e espacial produzido pelos trabalhos da exposição e assim coloca que: “Temos de assumir desde logo, por exemplo, que uma dimensão invisível seja parte integrante da forma.” (Brito, 2011)
O inabarcável está na ordem das ações propostas por Felix nas variadas paisagens que elege para atuar. Dos muitos projetos em que vincula Paisagem e Natureza, encontramos a surpresa espacial que constitui: “Cruz na América” (1995-2004) e o assalto, como aquele ladrão de estrada, ante sua: “Série Gênesis”.
Como tratado por Ronaldo Brito, Felix parte da escultura, mas não se restringe a ela. Busca operar a materialidade particular e a longevidade de materiais orgânicos e inorgânicos que são combinados em ações delongadas de tempo que podem chegar até três décadas para efetivarem-se. O procedimento da encarnação é o que o artista utiliza, na maior parte desses projetos. Encarna como o feroz, encarna, quase sempre, na mata, na paisagem distante. É assim que se efetiva, por exemplo, o trabalho intitulado de: Grande Budha. Materiais nobres tais como: marfim, diamante, ouro, prata, cristal encarnam a pedra, a madeira da árvore na floresta, o osso do animal vivo. Vinculando a nobreza e a natureza de materiais tão distintos podemos compreender a proposição de Felix como sendo tão feroz quanto perspicaz e paciente. Para serem encarnados, esses materiais inorgânicos devem aguardar lentamente, até serem absorvidos pelo elemento orgânico que compõe o trabalho.
É assim que “Cruz na América” é construído: a partir da eleição de lugares distantes, lugares de paisagem natural nos quais a ação artística constrói estruturas deixadas para que o tempo as desenvolva. Assim, o trabalho efetiva-se, não pelo espaço ou pela escala local de cada uma das quatro ações planejadas (floresta, pampa, deserto e litoral), mas sim pelo cruzamento das localidades que contemplam cada ação e que juntas, resultam no formato de uma cruz aplicada sobre o território da América do Sul. Está na relação de mapeamento o aspecto estruturador do trabalho, é desse vazio, dessa invisibilidade que dissertava Brito sobre o trabalho do artista.
Felix igualmente implanta uma noção de tempo delongado para seu trabalho que depende da modelagem dos materiais orgânicos, de natureza por sobre os inorgânicos e assim, estabelece uma vigília.
A temporalidade decorrente da vigília e “Ilhas de Plantas”
A vigília presumida nessa relação delongada do trabalho artístico e seu espaço de paisagem estabelece um modo de operar que é próprio do artista contemporâneo, formado a partir das questões da desmaterialização do objeto artístico; da hibridação dos meios; da prerrogativa da ação em detrimento do objeto. Cabe a ele também a busca por outros lugares, por novos interlocutores e, de modo particular, a consciência crítica para formular a temporalidade do trabalho a partir dos vetores: efêmero, temporário ou permanente.
Este encontro com tipos de temporalidade programados para o trabalho artístico é prerrogativa discutida a partir da desmaterialização do objeto de arte, conclamada por Lucy Lippard, em meados da década de 1970. Naquele momento, as operações artísticas levavam à questão da desmaterialização por meio dos aparatos tecnológicos, pela importância assumida pela Arte Conceitual, pela transformação da arte em ideia ou pela transformação decorrente do espaço do ateliê em espaço de estudos ao invés de lugar para a produção física e material. (LIPPARD, L e CHANDLER, John: 2013, 152) A economia de ações e materiais associada à limpeza industrial incorporada à construção dos trabalhos aproxima o entorno urbano e seus códigos e nos indica a primeira fresta para o escape da arte de dentro para fora, para o espaço aberto e urbano. E, nesse sentido, o tempo empenhado para a leitura desses trabalhos usualmente abstratos, elaborados industrialmente e dentro de métodos seriais que estendem_ quase ao infinito ou ao “insuportável”_ o tempo de sua expectação, põe em questão o tempo do olhar destinado a um tipo de trabalho admitido como “vazio ou com um mínimo de ação, [algo] que parece infinitamente mais longo do que o tempo preenchido-com-ação-e-detalhe” (LIPPARD, L e CHANDLER, John: 2013, 153).
Encontra-se nessa nova métrica temporal, paralela às transformações espaciais, o contexto de revisão dos contornos a ser admitido no campo da Arte e Meio Urbano; suas relações com a Contemporaneidade artística e, por fim; seu alargamento para as bordas da Paisagem que anuncia a Natureza.
Desde 2005, tenho trabalhado com elementos da Natureza em instalações e intervenções na Paisagem em projetos apresentados a partir de/ou independentemente de vínculos com instituições culturais. Nesses trabalhos, a combinação de inscrições de desenhos sobre plantas ou executados sobre grandes áreas gramadas no espaço urbano produzem trabalhos de um tipo de temporalidade que não se encaixava na total efemeridade do evento, ou mesmo na previsão de perpetuação do objeto. Instigavam também para as relações possíveis com o jardim, com a mata ou a floresta que, numa relação invertida àquela ditada pela urbanidade, passam a perscrutar os contornos esquadrinhados entre elas e a cidade contemporânea.
A série de intervenções artísticas “Arquiteturas Prováveis”, foi criada para um dos gramados do campus da UNICAMP, no ano de 2005, e desdobrou-se, mais tarde, no pavimento que se localiza aos pés da escadaria do Paço das Artes de São Paulo, trabalho realizado a partir da exposição coletiva “Por um fio” (2007) curada por Daniela Bousso. É uma série que propunha a construção de grandes desenhos arquitetônicos em cal sobre a grama. A área média ocupada pelos desenhos é a de 300 metros quadrados. Sua visualidade trazia referências de projetos arquitetônicos conhecidos, como praças Renascentistas ou projetos Modernos não realizados efetivados sobre o solo para instigar uma inauguração que, contudo, não se efetivava.
Assim, esses trabalhos guardam, na tênue visualidade trazida pelo desenho feito a cal, sua própria condição de temporalidade e, deste modo, terminam por esboçar os princípios da condição de vigília que se evidencia em projetos mais recentes. Em 2015, efetiva-se o projeto expositivo 1+1=3, premiado pela Secretaria de Cultura de Campinas e apresentado em exposição itinerante entre o Museu de Arte Contemporânea – MAC Campinas e os espaços expositivos_ Galeria e Pátio_ da Oficina Cultural Oswald de Andrade, na cidade de São Paulo. Neste projeto expositivo, é criada a série “Ilha de Plantas” que atualiza as questões do desenho e da temporalidade anunciadas em “Arquiteturas Prováveis”.
“Ilha de Plantas” emprega materiais orgânicos para apresentar uma sobreposição de marcas visuais elaboradas sobre as peles das plantas como se promovêssemos nessas estruturas dados gráficos sobre sua memória, sobre sua história decodificada pela Urbanização e Ciência. Na experimentação para as “Ilhas”, as plantas escolhidas são do tipo “Sansevieria Trifasciata”, conhecida popularmente no Brasil como “Espada de São Jorge”. É uma planta que carrega intensa carga sincrética, da qual se pretende evidenciar o aspecto urbano, assumido por sua presença algo intrusa, algo informal, de planta nascida, sem ser necessariamente cultivada em cantos da calçada, apresentada em vasos nas portas de entrada ou espaços de garagens domiciliares.
Dispostas sobre montes de terra que geram formatos de ilhas, em formas circulares, conectam-se por uma estrutura de tijolos que assumem um formato escultórico e integra suas partes como num arquipélago.
Seja pela comprida estrutura de tijolos que convida para uma parada e possibilita que os visitantes possam nele apoiarem-se sentados; seja pela presença dos jardins em forma da ilha que convidam para o reconhecimento do detalhe do desenho elaborado sobre as folhas das plantas, o trabalho exercita uma instigante interação com o público local e dá sugestões claras sobre os desdobramentos naturais a serem percebidos no crescimento das plantas e apagamento moroso, porém, efetivo dos desenhos feitos sobre suas folhas.
Desse modo, o trabalho exercita também o que Humberto Giannini intitula de “visão topográfica do feito cotidiano”; isto é; ao convidar o visitante para que permaneça, o trabalho promove uma espécie de desvio, de transgressão de nossa condição de rota e de rotina. Assim, desafia o outro a disponibilizar-se: “en esa floja articulation de reiteraciones que és la rutina, mi disponibilidad para los otros – o en un sentido mas fuerte, para lo otro – está mediatizada por, y dirigida a una disponibilidad para si mismo, en otro lugar.” (Giannini: 2013, 66).
Estar disponível invoca tempo e lugar praticados em nome de outrem. Sob tais condições, de disponibilidade e vigília, é que se elaboram as afinidades eletivas dos trabalhos artísticos discutidos.
O artista que constrói um jardim atua, sem dúvida, em um constructo simbólico espacial distinto que conta com um tipo de amortecimento sedante da natureza, convidativa à aproximação. É, assim, estratégia de desvio, elemento que viabiliza a interlocução do trabalho. Mas, ao invocar essa disponibilidade do outro de forma que seja seu interlocutor, o artista igualmente disponibiliza-se, já que a estrutura desses lugares de natureza, instáveis, em constante mudança, igualmente demandam sua presença e atenção. Distingue-se, assim, a ideia pragmática da manutenção em relação à vigília.
A atenção presumida na vigília faz eco ao contexto da passagem do artista pelo lócus no qual instaura seu trabalho, na atualidade; diz respeito ao gradativo ajustamento dos mapas preteridos em relação ao modelo do itinerário, da criação de certa sequencia de eventos e ações ao longo dos espaços, tal como indica Miwon Kwon em sua revisão sobre os conceitos de site specificity art (Kwon: 2008, 172). Deste modo, a vigília não é a manutenção nos termos colecionistas; ela nos conduz para um estado em guarda, de insônia, produzidos pela presença do artista que nessa interação com o trabalho pode destinar-lhe determinada temporalidade.
Assim, entre a participação dos transeuntes/visitantes e sua própria existência como trabalho de arte impõe-se a noção temporal trazida pelo contexto da vigília, a estabelecer intrincada longevidade a estes tipos de intervenção artística vinculados estreitamente à Natureza e à Paisagem. Seja pelas visitas-desvios para a floresta, à busca das movimentações das plantas sobre as estruturas deixadas, anos antes, pelo artista, como espécies de marcas no terreno (como no caso de Beuys e Felix); seja pela surpresa sedante do encontro de um trecho de natureza no espaço urbano (como nos propõe o jardim de Holzer ou as “Ilhas de Plantas” e as “Arquiteturas Prováveis”) podemos compreender que o interim da Paisagem efetiva nova camada temporal e espacial para os outros lugares da arte na contemporaneidade.
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[1] O presente artigo foi originalmente elaborado e publicado, em sua versão em espanhol, para os anais da VIII Jornadas Arte y Ciudad / V Encuentros Internacionales da Universidad Complutense de Madrid, 2017. Esta é a versão na língua portuguesa revisada e destinada à Revista PROART – Revista de Arte, Arquitetura, Comunicação e Design. Multiplicidades Dialógicas. Vol.1, n.1, ago/dez, 2019, Bauru, pags. 55-71.