As folhas das plantas dão a sentir o mistério da vida na Terra. Não apenas a vida dos indivíduos a que pertencem, mas a vida de todo o reino vegetal e de toda a biosfera (Coccia, 2018). Cada folha traz em si todas as outras folhas, cada planta todas as outras plantas, cada reino todos os outros reinos, seja vegetal, animal ou mineral. Percepções fractais que emergem dos gestos da artista Sylvia Furegatti, que brotam dos modos como usa e pensa o desenho, a fotografia e a montagem. Os desenhos feitos nas folhas de aloe vera e espada de São Jorge expõem outras plantas colhidas de seus arquivos de imagens catalogadas pela Botânica. Desenhos que não seguem as linhas de parentesco, descendência e filiação que tradicionalmente movem tanto a biologia como a antropologia, antes abrem as plantas, o arquivo, a Botânica e os humanos para relações não previamente programadas, interrogando os roteiros Ocidentais modernos. São modos de dar expressão a parentescos aberrantes, podemos pensar com Donna Haraway (2016), a linhas mais próximas da linha da vida, a histórias inscritas nessas superfícies que não são lineares, sucessivas e evidentes. Nas composições entre pedras e folhas de várias plantas diferentes, jiboia, jaqueira, palmeira, orquídea etc., os desenhos entre pedras e plantas exibem como a vida procede ao longo de linhas, como viver é um constante transmutar-se e tornar-se ao longo de linhas (Ingold, 2015). As linhas das folhas e os contornos dos corpos vegetais já se encontram adormecidos nas pedras. É como se as plantas já existissem desenhadas e sonhadas pelas pedras. Talvez as pedras possam ser pensadas como os primeiros desenhistas do mundo. Como se as pedras guardassem uma memória elemental de futuro e as plantas aprendessem a fazer pedra por outras linhas, criando e recriando-se a si mesmas e ao mundo em mútuas relações. A potência da expressividade da linha é a da conexão, não se tem mais plantas ou pedras, mas plantas-pedras, um bloco de relações que ganha existência pelo desenho e passa a mover delicadamente nossas percepções para fora do habitual. Somos convidados a seguir por conexões abertas, móveis e provisórias, pois que as linhas não aprisionam, não determinam, apenas sugerem. As fotografias, tal como as folhas que abraçam e acolhem as pedras, abraçam e acolhem as plantas-pedras e permitem criar outras composições com novos elementos. Plantas-pedras repousam sobre o chão junto com linhas liberadas pelas plantas para a terra, seja em galhos ou folhas secas. Linhas que pela decomposição serão liberadas das formas já dadas e histórias já vividas e se tornarão disponíveis para outros encontros, para a invenção de outras vidas possíveis. A fotografia não apenas registra e conserva as composições planta-pedra, antes participa com o desenho do processo contínuo de liberação das linhas para que elas possam seguir variando. A inserção desse bloco desenho-fotografia nos back lights dão a perceber que o segredo de plantas, pedras, desenhos, fotografias, humanos… é a luz. Tudo é iluminado desde dentro e num detalhe da folha de aloe vera vemos como as linhas do desenho se transformam em fissuras que deixam vazar algo desse corpo-luz das plantas. As caixas de madeira que contém a iluminação, a fotografia, o desenho, as pedras e as plantas parecem redesenhar tudo novamente num novo bloco de relações do qual, agora, participam as árvores. Sentimos como toda a vida se faz na relação com a luz, na possibilidade dos corpos e superfícies se relacionarem com a luz. Se as pedras podem ser os primeiros desenhistas do mundo, talvez as plantas possam ser, ao mesmo tempo, as primeiras máquinas fotográficas, fotógrafas e fotografias do mundo. Elas nos ensinam que fotografar é sintetizar luz, tornar-se capaz de se relacionar com o Sol, produzir energia e torná-la disponível para inúmeros outros processos e seres. Fotografar é transformar matéria em material e fazer corpo com o mundo, é fazer do corpo casa, refúgio para inúmeras outras formas de vida, é aprender a desenhar com linhas de luz. Daí que a Casa de Eva seja como mais bloco que abriga e transforma as caixas de madeira, back lights, fotografias, desenhos, plantas e pedras. As espadas de São Jorge com desenhos, do lado de fora da casa, já anunciam que o mistério das plantas tem a ver com essa espécie de desenhos de luz sem fim que as plantas traçam com as pedras e com toda a biosfera. Desenhos que nos convidam a reativar continuuns entre dentro e fora, entre desenhos e fotografias, entre plantas e pedras, entre humanos e não-humanos, entre arte e vida. Daí que o artista, como sentimos com Sylvia, possa tornar-se esse ser que aprende a carregar um jardim aberrante dentro de si, e se dispõe a esses aprendizados ao trançar suas linhas pelo emaranhados dos mundos, contribuindo para que os movimentos dos mundos possam seguir protegidos por caminhos abertos e indeterminados, ou seja, misteriosos.
Susana Dias
Pesquisadora (Pq B) do Labjor Unicamp; Professora dos cursos de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (MDCC). É também Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH-Unicamp
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(1)COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Trad. Fernando Scheibe. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2018.
(2)INGOLD, Tim. Líneas: una breve historia. Trad. Carlos García Simón. Barcelona: Ed. Gedisa, 2015.
(3)HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Trad. Susana Dias. ClimaCom, ano 3, n.5, 2016.
Casa de Eva
Rua Desembargador Antão de Moraes, 588 –
Cidade Universitária II, Barão Geraldo, Campinas, SP
abertura: 13.jun às 19h
visitação: de 14.jun à 18.ago 2019
* quintas e sextas-feiras, das 14h às 18h (exceto feriados), demais dias da semana, mediante agendamento.